Mudança


Estou mudando de apartamento.

Preciso encaixotar as coisas úteis de todo dia, encontrando o melhor jeito de acomodar pratos e canecas, uma caixa inteira de roupas, as sacolas com comida, os livros, os vários frascos do banheiro. Mas o difícil mesmo é dar de cara com o meu gigantesco apego material, o desgaste de querer e não conseguir se desvencilhar, as decisões de o que vai e o que fica, tornando o processo demorado, cansativo, extenuante. (Estar doente não ajuda.)

Percebo que cresci com a mesma mania da minha mãe, de guardar coisa inúteis na crença ingênua de que um dia precisarei delas, ou de que minhas memórias estão condicionadas à existência de uma coisa palpável que possa despertá-las. É difícil se desfazer dos cadernos com letra bonita, das agendas coloridas, das 200 folhas de papel que poderiam servir de rascunho, se alguém por aqui ainda usasse papel para alguma coisa. Mais canetas do que em qualquer fase da vida, se acumulando no porta-lápis improvisado que fica no canto da mesa. Tantas coisas que comprei e nunca nem usei.

Consegui jogar alguns CDs gravados, rasguei talões de cheque, já desisti de ler várias revistas. Mas é tanta coisa que parece que não tem fim. Queria poder ir pra casa nova com aquela sensação boa de recomeço, mas não vai dar tempo disso acontecer.

ouvindo: L'enfant roi, Noir Désir.
lendo: A feast for crows, George R. R. Martin.
eu deveria ter vergonha de falar de tristeza
nem sei o que é tristeza
de verdade
mas não

há coisas maiores (piores)
mas a comparação não dissipa
a pedrinha no sapato
que aperta o espinho
preso na unha
encravada
do pé
torto

Correspondência

De férias na casa dos pais, tentei me entregar à tarefa de arrumar o antigo armário e seus resquícios de uma vida em outra cidade. Não é fácil.

Em caixas com tampas coloridas, evidências materiais da época em que éramos incrivelmente jovens. De quem dividia classes, bilhetes bobos de desgosto contra professores, auto-fofocas do fim de semana, distrações da aula em pequenos fragmentos de uma vida que agora parece muito distante. De quem morava perto, cartões de aniversário, curtas cartas inesperadas e cheias de sentimento que precisava ser escrito. Dos que moravam longe, cartas compridas em finas folhas de caderno, que chegavam em envelopes de papel madeira, o endereço escrito com capricho em letra de forma; alguns com tons de rosa - vestígio da cola da agência dos correios, poemas, outros com saliências que revelavam pequenos presentes, xerox de um texto preferido, livros emprestados, pequenos chaveiros: tínhamos sede de alguma forma de presença palpável que a internet não supria. Tenho saudades de receber no correio notícias que já vinham atrasadas, mas eram mais doces do que qualquer atualização instantânea.

{ envelhecemos e quase já não nos falamos - há um carinho latente e uma estranha barreira de comunicação que ninguém se esforça para romper;
envelhecemos e quase ninguém sabe como é minha letra;
envelhecemos e me perdi das palavras e frases e cartas e livros;
envelhecemos e eu envelheci mais que devia }

to remind you when to get off

não faz sentido, não é bonito, não é saudável, não é prazeroso, não traz recompensa alguma,
e permanece porque já não se sabe como fazer diferente.

tudo aquilo que se avoluma a ponto de explodir
e nunca explode,
cansa.

ouvindo: The build-up, Kings of Convenience.
lendo: A Game of Thrones, George R. R. Martin.

Do acúmulo

; A vida estranha que a gente leva, um equilíbrio entre frustrações e vontade de sobreviver.

; Um quase-casamento que veio quando você menos esperava, mas que faz bem e você torce pra dar certo e não ser mais uma coisa na lista de "eu não sou tão boa nisso".

; O desespero físico de ter alguém para abraçar, que não passa nem com abraço, como se fosse uma agonia de ter um corpo material.

; A faculdade que te absorve e tira de você tantas coisas boas e dá em troca coisas duvidosamente empregáveis na a construção de uma vida feliz, porém talvez com mais dinheiro e menos adolescencices na cabeça - me sinto muito adulta sublimando os problemas e vivendo um dia atrás do outro sem ter tempo de pensar.

; A dificuldade em escrever algo que faça sentido, que seja relevante, que seja bom. As fotografias feias ou fora de foco, que não dizem nada nem pra mim, que as tirei. O pensamento automático, o sentimento de cérebro atrofiando, de estar jogando no lixo a fase teoricamente mais produtiva da vida.

; Os segredos pesados que você carrega sem querer e que o tempo não torna mais leve, pelo menos não até agora.

; Os amigos que você perde por não saber cuidar e os novos que você não faz por não saber bem como agir. A hesitação entre criar uma concha e sair de todas as redes sociais ou de voltar a ter uma vitrine onde as pessoas sabem de você e podem te stalkear com moderação.

; O cansaço crônico que pode ser depressão, um colchão ruim ou simplesmente um excesso de atividades mesmo, quem sabe - talvez eu tenha nascido para uma vida mais simples e fique desafiando essa minha tendência genética com um esforço absurdo e inútil. A preguiça e a falta de paciência.

; O forno que sempre estraga os bolos que você faz para alguém, os plásticos manchados de molho de tomate, a geladeira que acumula verduras estragando - aquelas mesmas que você comprou com tanto carinho na feira de sábado, mas não teve oportunidade de comer. O chão manchado, o azulejo quebrado, o chuveiro sem aterramento que pode um dia te matar pelada no banho.

; O ano novo que já veio fodido e sem muitas esperanças, justamente por ter começado com um contraste gigante entre querer e ter, vontade e razão, coragem e circunstâncias.

; A pontuação não convencional que a gente usa quando escreve um texto, apenas para sentir que pode ter controle sobre alguma coisa.

; Os comprimidos do tratamento abandonado pela metade que te olham perguntando se você já decidiu se eles são necessidade real ou a solução mais fácil.

... Faço planos etéreos, difíceis de materializar e também tenho pensado como a minha eu do passado se sentiria em relação a mim: talvez ficasse feliz, talvez tivesse pena, talvez segurasse minha mão e me levasse pra passear por aí, "vem cá, não se martirize tanto".

{Alguém ainda lê isso?}

ouvindo: Chinatown, Destroyer.
lendo: Para sempre teu, Caio F., Paula Dip.

Não deixe

Quando os olhos ficam molhados de uma maneira que não há pensamento racional que possa controlar, quando você acumula tantas fugas reais ou imaginárias que não sabe pra onde ir ou pra onde voltar, quando os (a)braços necessários estão longe, quando cigarros ou bebida não são uma opção, quando você sente o vórtex puxando forte e não sabe onde tudo começou a des-
andar

: prestar atenção na música, um mantra que repete
don't let the darkness eat you up,
don't let the darkness eat you up,
don't let the darkness eat you up,
don't let the darkness eat you up,
respirar fundo, ligar o modo catatonia e procurar qualquer distração até que, exausta, consiga dormir, esperando que amanhã as amenidades resolvam dar bom dia.

ouvindo: Down the line, José Gonzalez.

02:01

odeio esse silêncio pesado.
mas me acalma um pouco ficar assim
quieta
ouvindo sua respiração, também pesada.

faz as lágrimas pararem um pouco,
antes de saírem pela porta
dos olhos
que coçam pela rinite.

o ar vai expandindo
dentro e fora
primeiro aqui dentro e depois fora,
lento e rítmico.

mas o coração permanece apertado
e eu continuo sem saber o que dizer
pra você
nem pra mim mesma.

não é fácil.

Tatuagens

Acho tatuagens bonitas, mas nunca pensei concretamente em ter uma. Mas hoje estive pensando que, se fosse tatuar alguma coisa escrita agora, provavelmente seria um trecho de Song of myself, do Walt Whitman:

There was never any more inception than there is now,
Nor any more youth or age than there is now,
And will never be any more perfection than there is now,
Nor any more heaven or hell than there is now.

Bom dia

Todas as manhãs poderiam ser como hoje. Acordar antes da hora, voltar a cochilar (abraçada em alguém), levantar de pronto e sem preguiça quando finalmente toca uma música feliz no despertador do celular novo que você ganhou de presente. Dia frio, mas de sol e de céu azul. Checar os e-mails, comendo iogurte de morango num potinho com maçã picada dentro e um cereal de fibras que nem é tão ruim assim. Sair de casa no horário certo, mesmo depois de ter tempo para arrumar o cabelo e passar um blush, pra ficar com cara de saudável. E rumar para a 1ª prova do fim do semestre, com a sensação boa de ter estudado tudo, mesmo precisando tirar apenas 5,0 numa prova que promete ser fácil.

(Mas dispensaria a garganta doendo, a sensação de que os próximos dias não serão nem de longe assim calmos e a velhice chegando.)

Das possibilidades profissionais

O hospital universitário me fascina e me deprime: para cada caso mirabolante que você encontra e que exige um raciocínio apurado para desvendar em que ponto cada coisa começou (o que veio primeiro: a hipertensão portal ou a esplenomegalia?), para cada sopro que você ausculta, para cada sinal raro que você raramente vai ver de novo fora dos livros, tem sempre ali na sua frente uma pessoa de verdade, que sofre naquelas internações arrastadas, na demora do próximo exame, na angústia pela alta que nunca chega; uma pessoa que pode estar verde de tanta icterícia, um paciente tão fudido que nem um transplante salva, a senhora que - fora a dor nas juntas - não sente nada, mas tem um câncer inoperável de pulmão.

Quanto mais o tempo passa, tenho mais vontade de ficar longe disso, de ser médica de atenção básica, ajudando o seu joão analfabeto a aprender quando tomar cada um dos 7 remédios da hipertensão e do diabetes, puxando a orelha da maria que não veio fazer o pré-natal na data certa, tendo raiva do SUS e sabendo que nada do que eu faça vai resolver profundamente muita coisa, assim como aconteceria em qualquer que fosse a ponta do sistema de saúde em que eu acabasse indo parar.

A pergunta clássica - "Mas você vai se especializar/fazer residência em quê?" - tem cada dia uma resposta evasiva diferente, dependendo do interlocutor e da minha paciência em explicar que quanto mais eu estudo sobre medicina, sobre saúde, sobre o mundo, mais impotente eu me sinto no meio desse turbilhão.

Eu podia ter escolhido coisa mais fácil, mas agora já é tarde.

ouvindo: Bodysnatchers, Radiohead.